O tema são as cotas para negros na universidade. E novamente volta aquela polêmica de que se trata de uma "medida racista", que se deve "melhorar o nível da educação fundamental", que deve se estabelecer cotas sociais e não raciais.
Vou reproduzir então uma entrevista publicada na edição de 30.06.2003 (há quatro anos, portanto) na Revista Época. O entrevistado era o professor Roberto Miranda (ex-presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea). É interessante ver o ponto de vista dele sobre o assunto...
ROBERTO MARTINS
Dados pessoais: Nascido em Belo Horizonte, Minas Gerais, tem 55 anos, uma filha e dois netos.
Trajetória: Economista formado pela Universidade Federal de Minas Gerais, fez mestrado e doutorado nos Estados Unidos, lecionou na graduação e na pós-graduação por 30 anos e presidiu o Ipea de 1999 a 2002. Trabalha em um grupo de estudo da ONU que trata de racismo e ações afirmativas.
ÉPOCA - O que está dando errado na política de cotas para negros?
Roberto Martins - A polêmica maior ocorreu na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (Uerj), com a cumulatividade da cota de estudantes de escolas públicas com a de negros. Isso resultou numa cota muito alta, mas pode ser corrigido se for eliminado o primeiro critério. De qualquer forma, as críticas eram previsíveis. Até hoje a sociedade brasileira se recusa a discutir o racismo, pois continua presa ao mito da democracia racial: a falsa idéia de que no Brasil não há discriminação.
ÉPOCA - Esse sistema não favoreceria somente negros de classe média, que nem precisariam da cota?
Martins - É claro que o sistema não teria sentido se só colocasse na faculdade pessoas que entrariam de qualquer jeito. Mas a realidade é outra. Sem a cota, os negros não estão entrando. Na Universidade de São Paulo, os negros são apenas 1,3% dos 39 mil alunos. Isso é irrisório em um país onde 45% da população é negra.
ÉPOCA - A questão não precisa ser mais debatida?
Martins - Esse é um argumento falacioso. A única maneira de debater é fazer. O movimento negro tenta debater há décadas e ninguém se interessou. Essa é a primeira vez que se ouve falar disso na rua, na fila do banco. As reclamações de quem ficou de fora são naturais. Cota é o aspecto mais polêmico da ação afirmativa. Se alguém propuser celebrar a contribuição do negro para a cultura ou criar um memorial Zumbi, ninguém reclama. Quando alguém faz ação afirmativa de verdade, há reações.
ÉPOCA - A cota da Uerj nasceu de uma ordem do governo. Não seria melhor se tivesse origem na universidade?
Martins - Claro que é sempre desejável ampliar a discussão, mas não acredito em consenso nesse caso. O Estado, portanto, faz bem em liderar o debate. Em algumas coisas, como na luta pela preservação do meio ambiente, a sociedade saiu na frente. Na questão racial, o Estado é que está à frente, e isso não é ruim.
''Vi gente dizendo que raça não existe do ponto de vista genético. Mas o problema não é genético, é social. As pessoas são vítimas de discriminação em função de características sociais. Entre os ricos, 90% são brancos e 10% negros. Entre os miseráveis, a proporção é sete negros para três brancos''
ÉPOCA - Alguns especialistas consideram que o sistema é inconstitucional, pois fere o princípio de que todos são iguais perante a lei.
Martins - Eu fico com a opinião do ministro Marco Aurélio Mello (do Supremo Tribunal Federal), que já defendeu a legalidade. A Constituição não apenas permite a adoção da cota como induz a isso, pois pede que se busquem meios para promover a igualdade. Hoje, vemos que a simples aplicação do princípio da igualdade perante a lei não promove a igualdade, mas perpetua desigualdades históricas. É como dar um Fusca a um e uma Ferrari a outro e competir com as mesmas regras. Não queremos tratar iguais de forma desigual. O objetivo é tratar desiguais de forma desigual. Tem mais: se for usar esse raciocínio, não há por que dar privilégios para deficientes e idosos, por exemplo. Isso existe porque reconhecemos uma desvantagem dessas pessoas que precisa ser compensada. Com o negro é o mesmo caso. A diferença racial não é natural. Ela foi criada e agora precisa ser desconstruída com uma ação temporária.
ÉPOCA - Quanto tempo?
Martins - A política de ação afirmativa nos Estados Unidos começou em 1975. Hoje, a classe média negra americana é quatro vezes maior, com empresários, advogados e médicos negros. Basta ver Colin Powell (secretário de Estado), que se declara produto da ação afirmativa. Três décadas, portanto, podem gerar um efeito poderoso. Suspeitamos que a desigualdade no Brasil hoje seja maior que a americana de 1975. E temos um dado impressionante: na África do Sul, mesmo durante o apartheid, a desigualdade educacional entre brancos e negros estava decrescendo. No Brasil até hoje isso não aconteceu.
ÉPOCA - Então por que nesses países há conflitos raciais e aqui não há?
Martins - Eles discutiram o problema mais cedo e a reivindicação foi mais intensa. No Brasil, a negação do racismo gera esse efeito: não se faz nada. É uma paz falsa, pois ela está ancorada na permanência da desigualdade. Não há Ku Klux Klan no Brasil, mas também não precisa ter, já que negros são mantidos fora do mercado sem violência.
ÉPOCA - Isso quer dizer que a adoção da cota poderá potencializar conflitos raciais no Brasil?
Martins - Sim, é possível. Em todo lugar onde ela foi implantada, o conflito se acirrou. Quando isso acontece, o Estado decide que a promoção da igualdade é um objetivo justo e continua bancando. O país pode ter, sim, algum conflito se implantar o sistema de promoção da igualdade racial. E o que terá se não implantar nada?
ÉPOCA - A cota não representa risco para a qualidade do ensino, já que une pessoas que estão em patamares diferentes de aprendizado?
Martins - Fui professor universitário por 30 anos e essa história não procede. Nem todo mundo que entra na faculdade é gênio. Já vi gente fraca entrar e acompanhar bem. Dizem que a cota é humilhante para o negro. Humilhante é não ter médicos, juristas e generais negros. Não se propõe cota de médicos negros nos hospitais, mas cotas para entrar no curso de medicina. Como lá dentro todos passam pelo mesmo crivo, o médico negro não será pior que o branco.
''Não temos leis racistas e de fato há um razoável grau de miscigenação, o que leva as pessoas a achar que não há discriminação. Mas isso é um mito. Note que a Ku Klux Klan apareceu nos EUA depois da escravidão. Aqui esses movimentos não surgiram talvez porque os negros não estejam disputando o mercado''
ÉPOCA - Como resolver o problema do branco que se declara negro só para se beneficiar da cota?
Martins - Toda vez que há uma política focalizada surge o problema da identificação. É inevitável. Certamente há gente fora do limite da renda do Programa Bolsa-Escola sendo beneficiada, por exemplo. De qualquer forma, uma idéia é criar controle social sobre a raça. A Uerj pode montar uma comissão da comunidade para resolver casos duvidosos. Se há dúvida quanto à cor do candidato, vamos ver qual é a percepção da sociedade sobre ele. A maioria das inscrições não dá problema e isso não pode servir de desculpa para não fazer nada.
ÉPOCA - Se a comissão disser que o sujeito não é negro, vão dizer que ela está discriminando.
Martins - Já ouvi o seguinte: 'Para resolver o problema de identificação, basta chamar a polícia. Ela sabe quem é negro e quem é branco, pois atira mais no negro que no branco'. Ora, se a sociedade brasileira é capaz de distinguir na hora de discriminar, por que não seria capaz de fazer o mesmo na hora de promover a igualdade?
ÉPOCA - Por que escolher o negro para fazer ação afirmativa, e não o índio, o homossexual ou a mulher?
Martins - Por causa do tamanho. O Brasil tem a segunda maior população negra do mundo, atrás da Nigéria. Não deixo de reconhecer outras desigualdades, mas o problema maciço é o da raça. Além disso, a questão da mulher vem sendo enfrentada com progressos no mercado. A ação afirmativa não elimina a obrigação do Estado de investir em educação. Mas, por ser persistente, o problema merece ser tratado com instrumentos específicos. Um jovem branco com 25 anos tem 2,3 anos de estudo a mais que um negro. Na época dos avós desses jovens, a distância de estudo entre os grupos era a mesma. Um século de progresso não serviu para aproximar as raças.
ÉPOCA - Na comparação de salários, a média dos negros é menor que a dos brancos. Mas isso não seria resultado apenas da diferença de escolaridade? Onde está a discriminação?
Martins - Ao comparar salários de brancos e negros com a mesma escolaridade constata-se que os negros ganham menos, o que denuncia a discriminação. Nunca vi um indicador em que o negro estivesse pelo menos empatado com o branco. Está sempre pior. O único em que há aproximação é o do acesso ao ensino fundamental, apenas porque, nesse caso, o país está próximo da universalização.
Professor Roberto Martins
Um comentário:
Professor,
Muito esclarecedora esta sua entrevista, sou negro e professor universitário e nem por isso deixo de ser discriminado a todo o momento, a maior balela que tenho escutado em minha vida é a de que o Brasil não tem racismo, o mais interessante desta afirmação é que só os brancos defendem esta tese...
Vicente Willians
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