Nessa época de pré-carnaval, meu ídolo Nei Lopes publicou em seu Lote, uma gostosa crônica sobre as origens da folia e algumas considerações do carnaval contemporâneo. Curti tanto que merece reprodução. O texto, bem-humorado, é, também, ácido e implacável.
Manda ver, mestre Nei.
"QUEM DESFILA É SOLDADO”, JÁ DIZIA O WALDINAR.
Um certo jornalismo de variedades, que às vezes nos engana, fantasiado de “cultural”, insiste em confundir samba com carnaval, espetáculo com folia, alhos com bugalhos. É assim que, para esse jornalismo, todo diretor de bateria é “mestre”, todo sambista é “bamba”, toda “musa” tem “samba no pé”, e qualquer bebum deprê, desde que vista uma fantasia no carnaval, mesmo que seja uma reles camiseta de bloco de boteco ilustrada pelo picasso da esquina, é um “folião”.
A mesma linha de “raciocínio”, que repete mais do que pesquisa, vai sempre buscar as origens do carnaval brasileiro nas saturnais romanas, que, dizem, celebravam a volta da primavera e o renascer da natureza; e daí passa pelos bailes de Veneza, Nápoles e Florença, chega ao Zé Pereira e a um certo “Congresso das Sumidades Carnavalescas” que ninguém sabe bem o que foi.
O que quase ninguém menciona é que, embora relacionado ao calendário católico, o carnaval do Brasil e das Américas – o das ruas, livre e solto ( “abada”, camiseta e camarote é outro papo) – tem raízes em várias culturas africanas. Em Gana, por exemplo, entre o povo Akan, é comum a realização de um grande festival anual, o odwira (na ilustração acima), seguido de um longo período de recolhimento e abstinência, como na quaresma. Devido a essa similitude, as celebrações carnavalescas nas Américas com certeza devem sua alegria e seu brilho, fundamentalmente, à música dos afro-descendentes. Assim foi e é, no Brasil, nos ranchos carnavalescos, nas escolas de samba, nos maracatus, afoxés, blocos-afro etc.; no candombe platino; nas comparsas cubanas; e no mardigras, nas Antilhas e em New Orleans.
Em toda a América colonial, isolados pela sociedade dominante, africanos e descendentes uniam-se para celebrar o carnaval à sua moda, com a música e a dança de sua tradição, introduzindo, na festa européia, além dos instrumentos característicos, suas crenças e seu modo de ser. Na Martinica, o costume foi adotado por volta de 1640 e as festividades do kannaval, como é denominado o carnaval martinicano, expressam-se em um estado de espírito peculiar, transmitido de geração para geração. Durante muito tempo a festa realizada na cidade de Saint-Pierre foi o ponto culminante da comemoração na ilha, e, tendo sua fama se estendido pelo Caribe, atrai anualmente milhares de visitantes de todo o mundo. Depois da devastadora erupção vulcânica de 1808, a tradição carnavalesca reviveu em Fort-de-France, a nova capital da Martinica, onde, nos dias de hoje, os preparativos começam na epifania, em meados de janeiro, e se estendem até a quarta-feira de cinzas. Durante esse período e no carnaval propriamente dito, a cada domingo, grupos fantasiados saem às ruas, em trajes variados: casacos velhos, roupas fora de moda, chapéus rasgados, fantasias brilhantes e coloridas de arlequim, pierrôs e diabos. As máscaras também são importantes acessórios da festa: além das que homenageiam ou criticam personalidades do momento, há aquelas relacionadas à morte, repletas de simbologias africanas, cujo significado Aimé Cesaire encontrou em rituais da região de Casamance, no Norte do Senegal (conforme Alain Eloise). No Haiti, de modo geral, o carnaval é celebrado seguindo esse mesmo espírito e com traços semelhantes aos festejos que se realizam no Brasil, em Trinidad e na Louisiana, Estados Unidos. Em Porto Príncipe, o visitante encontra desfiles, festas e fantasias criativas, como os que se vêem nesses lugares. Da mesma forma em Cuba, onde o carnaval é celebrado, desde o século XVII, em julho; e onde a cidade de Santiago é tida por alguns como o berço do carnaval caribenho.
No Brasil, pelo menos desde o início do século XIX, a participação do povo negro nos folguedos carnavalescos sempre foi marcada, também, por uma atitude de resistência, passiva ou ativa, à opressão das classes dominantes. Proibidos por lei de revidar aos ataques dos brancos, africanos e crioulos procuravam outras maneiras de brincar no entrudo. Tanto assim que Debret, entre 1816 e 1831, período em que viveu no Brasil, flagrou cenas interessantes de carnaval, como por exemplo, um grupo de negros que, fantasiados de velhos europeus e caricaturando-lhes os gestos, zombava dos opressores, criando, sem saber, os cordões de velhos, de imenso sucesso no início do século XX. Entre 1892 e 1900 surgiram no carnaval baiano, pela ordem, a “Embaixada Africana*”, os “Pândegos d’África*”, a “Chegada Africana” e os “Guerreiros d’África”, apresentando-se em préstitos constituídos única e exclusivamente de negros. Essa modalidade carnavalesca – “a exibição de costumes africanos com batuques” – seria proibida em 1905 na Bahia. Exatos dois anos depois, surge no Rio de Janeiro o rancho carnavalesco “Ameno Resedá*” que, pretendendo “sair do africanismo orientador dos cordões” (conforme Jota Efegê), conquista, com seus enredos operísticos, importante espaço para os negros no carnaval carioca, preparando o caminho para as escolas de samba, que surgiriam um pouco mais tarde. Estruturadas no final dos anos de 1920, de 1932, ano do primeiro desfile realmente organizado, até os dias de hoje, as escolas de samba cariocas viveram várias fases de um instigante processo dialético. Nunca deixaram de ser, no entanto, pelo menos em tese, núcleos de resistência negra – a rica simbologia das alas de baianas e das velhas-guardas constitui exemplo emblemático.
Enquanto as escolas cariocas iam se transformando, na Bahia eram fundadas agremiações como o afoxé “Filhos de Gandhi”, em 1948, “para divulgação do culto nagô, como forma de afirmação étnica”, segundo seus estatutos; o bloco-afro Ilê aiyê, em 1974, “por um grupo de jovens conscientes da necessidade de manter viva a luta dos seus ancestrais pela completa integração social da população negra no Brasil”, também conforme seus objetivos estatutários; e o afoxé “Badauê”, em 1978, tornando, segundo o escritor Antonio Risério, “irreversível o processo de reafricanização do carnaval da Bahia”.
Mas nessa reafricanização, o capital acabou entrando de cabeça. Aí, vieram, entre outras novidades, os blocos-de-trio e os abadás (“abadá” é, no sentido originário, aquela espécie de blusão masculino, sem gola, usada no oeste africano e nos candomblés). Da mesma forma que, nas escolas de samba cariocas, veio aquele padrão de fantasia que, qualquer que seja o enredo, mistura punhos egípcios com capacetes astecas e capas de super-heróis, etc.
Em meio a tudo isso, veio a síndrome do “desfile”, do espetáculo, em prejuízo da “saída” espontânea, contaminando até o bloquinho mais mixuruca ali da esquina. É, então, que nos vem a cabeça a célebre frase do saudoso jornalista e boêmio carioca Waldinar Ranulpho (1922-1985), o qual, na sua ácida verve de cronista carnavalesco, talvez o último deles, um dia fulminou:
– Sambista “sai”, meu sinhô! Quem “desfila” é soldado! Grande Waldinar!...
Manda ver, mestre Nei.
"QUEM DESFILA É SOLDADO”, JÁ DIZIA O WALDINAR.
Um certo jornalismo de variedades, que às vezes nos engana, fantasiado de “cultural”, insiste em confundir samba com carnaval, espetáculo com folia, alhos com bugalhos. É assim que, para esse jornalismo, todo diretor de bateria é “mestre”, todo sambista é “bamba”, toda “musa” tem “samba no pé”, e qualquer bebum deprê, desde que vista uma fantasia no carnaval, mesmo que seja uma reles camiseta de bloco de boteco ilustrada pelo picasso da esquina, é um “folião”.
A mesma linha de “raciocínio”, que repete mais do que pesquisa, vai sempre buscar as origens do carnaval brasileiro nas saturnais romanas, que, dizem, celebravam a volta da primavera e o renascer da natureza; e daí passa pelos bailes de Veneza, Nápoles e Florença, chega ao Zé Pereira e a um certo “Congresso das Sumidades Carnavalescas” que ninguém sabe bem o que foi.
O que quase ninguém menciona é que, embora relacionado ao calendário católico, o carnaval do Brasil e das Américas – o das ruas, livre e solto ( “abada”, camiseta e camarote é outro papo) – tem raízes em várias culturas africanas. Em Gana, por exemplo, entre o povo Akan, é comum a realização de um grande festival anual, o odwira (na ilustração acima), seguido de um longo período de recolhimento e abstinência, como na quaresma. Devido a essa similitude, as celebrações carnavalescas nas Américas com certeza devem sua alegria e seu brilho, fundamentalmente, à música dos afro-descendentes. Assim foi e é, no Brasil, nos ranchos carnavalescos, nas escolas de samba, nos maracatus, afoxés, blocos-afro etc.; no candombe platino; nas comparsas cubanas; e no mardigras, nas Antilhas e em New Orleans.
Em toda a América colonial, isolados pela sociedade dominante, africanos e descendentes uniam-se para celebrar o carnaval à sua moda, com a música e a dança de sua tradição, introduzindo, na festa européia, além dos instrumentos característicos, suas crenças e seu modo de ser. Na Martinica, o costume foi adotado por volta de 1640 e as festividades do kannaval, como é denominado o carnaval martinicano, expressam-se em um estado de espírito peculiar, transmitido de geração para geração. Durante muito tempo a festa realizada na cidade de Saint-Pierre foi o ponto culminante da comemoração na ilha, e, tendo sua fama se estendido pelo Caribe, atrai anualmente milhares de visitantes de todo o mundo. Depois da devastadora erupção vulcânica de 1808, a tradição carnavalesca reviveu em Fort-de-France, a nova capital da Martinica, onde, nos dias de hoje, os preparativos começam na epifania, em meados de janeiro, e se estendem até a quarta-feira de cinzas. Durante esse período e no carnaval propriamente dito, a cada domingo, grupos fantasiados saem às ruas, em trajes variados: casacos velhos, roupas fora de moda, chapéus rasgados, fantasias brilhantes e coloridas de arlequim, pierrôs e diabos. As máscaras também são importantes acessórios da festa: além das que homenageiam ou criticam personalidades do momento, há aquelas relacionadas à morte, repletas de simbologias africanas, cujo significado Aimé Cesaire encontrou em rituais da região de Casamance, no Norte do Senegal (conforme Alain Eloise). No Haiti, de modo geral, o carnaval é celebrado seguindo esse mesmo espírito e com traços semelhantes aos festejos que se realizam no Brasil, em Trinidad e na Louisiana, Estados Unidos. Em Porto Príncipe, o visitante encontra desfiles, festas e fantasias criativas, como os que se vêem nesses lugares. Da mesma forma em Cuba, onde o carnaval é celebrado, desde o século XVII, em julho; e onde a cidade de Santiago é tida por alguns como o berço do carnaval caribenho.
No Brasil, pelo menos desde o início do século XIX, a participação do povo negro nos folguedos carnavalescos sempre foi marcada, também, por uma atitude de resistência, passiva ou ativa, à opressão das classes dominantes. Proibidos por lei de revidar aos ataques dos brancos, africanos e crioulos procuravam outras maneiras de brincar no entrudo. Tanto assim que Debret, entre 1816 e 1831, período em que viveu no Brasil, flagrou cenas interessantes de carnaval, como por exemplo, um grupo de negros que, fantasiados de velhos europeus e caricaturando-lhes os gestos, zombava dos opressores, criando, sem saber, os cordões de velhos, de imenso sucesso no início do século XX. Entre 1892 e 1900 surgiram no carnaval baiano, pela ordem, a “Embaixada Africana*”, os “Pândegos d’África*”, a “Chegada Africana” e os “Guerreiros d’África”, apresentando-se em préstitos constituídos única e exclusivamente de negros. Essa modalidade carnavalesca – “a exibição de costumes africanos com batuques” – seria proibida em 1905 na Bahia. Exatos dois anos depois, surge no Rio de Janeiro o rancho carnavalesco “Ameno Resedá*” que, pretendendo “sair do africanismo orientador dos cordões” (conforme Jota Efegê), conquista, com seus enredos operísticos, importante espaço para os negros no carnaval carioca, preparando o caminho para as escolas de samba, que surgiriam um pouco mais tarde. Estruturadas no final dos anos de 1920, de 1932, ano do primeiro desfile realmente organizado, até os dias de hoje, as escolas de samba cariocas viveram várias fases de um instigante processo dialético. Nunca deixaram de ser, no entanto, pelo menos em tese, núcleos de resistência negra – a rica simbologia das alas de baianas e das velhas-guardas constitui exemplo emblemático.
Enquanto as escolas cariocas iam se transformando, na Bahia eram fundadas agremiações como o afoxé “Filhos de Gandhi”, em 1948, “para divulgação do culto nagô, como forma de afirmação étnica”, segundo seus estatutos; o bloco-afro Ilê aiyê, em 1974, “por um grupo de jovens conscientes da necessidade de manter viva a luta dos seus ancestrais pela completa integração social da população negra no Brasil”, também conforme seus objetivos estatutários; e o afoxé “Badauê”, em 1978, tornando, segundo o escritor Antonio Risério, “irreversível o processo de reafricanização do carnaval da Bahia”.
Mas nessa reafricanização, o capital acabou entrando de cabeça. Aí, vieram, entre outras novidades, os blocos-de-trio e os abadás (“abadá” é, no sentido originário, aquela espécie de blusão masculino, sem gola, usada no oeste africano e nos candomblés). Da mesma forma que, nas escolas de samba cariocas, veio aquele padrão de fantasia que, qualquer que seja o enredo, mistura punhos egípcios com capacetes astecas e capas de super-heróis, etc.
Em meio a tudo isso, veio a síndrome do “desfile”, do espetáculo, em prejuízo da “saída” espontânea, contaminando até o bloquinho mais mixuruca ali da esquina. É, então, que nos vem a cabeça a célebre frase do saudoso jornalista e boêmio carioca Waldinar Ranulpho (1922-1985), o qual, na sua ácida verve de cronista carnavalesco, talvez o último deles, um dia fulminou:
– Sambista “sai”, meu sinhô! Quem “desfila” é soldado! Grande Waldinar!...
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